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sexta-feira, fevereiro 04, 2011

TRANSFORMAÇÃO DAS RELAÇÕES LUSO-ESPANHOLAS NO MARCO DA CONSTRUÇÃO EUROPEIA - AS RELAÇÕES LUSO-ESPANHOLAS NO NOVO CENÁRIO EUROPEU - 2ª PARTE



Se a Espanha considerara historicamente a Portugal como um parceiro menor, os mais recentes dados económicos não sustentam a assunção da estabilidade da posição espanhola como “grande potência”, sendo de facto questionável que alguma vez tivesse tal condição no último século. Curiosamente, embora Portugal seja um dos estados europeus que melhor se adequa ao conceito orgânico de nação, o incremento do peso comercial, econômico e financeiro da Espanha na última década pronto levantou numerosas polêmicas sobre uma hipotética “invasão espanhola”. Também periodicamente ressurgem polêmicas ainda não saldadas definitivamente como a questão de Olivença, frequentemente relacionada às (contrapostas) reivindicações espanholas sobre o enclave de Gibraltar, ou ao crescente interesse do Estado espanhol por territórios com os que historicamente Portugal tem vínculos especiais (caso do Brasil ou os PALOPs).

Apesar destas controvérsias, a convergência de ambos os países na UE/NATO é a mais forte garantia para o mantimento da dualidade peninsular. A implicação de ambos estados, ao mesmo nível, nestas instituições supra-estatais trouxe o princípio do fim do iberismo político em sentido estrito, uma vez que, em um momento no que mais e mais parcelas de soberania são cedidas aos órgãos internacionais, este deixa de ter sentido como tal. Esse velho iberismo retórico e impraticável deixa a porta aberta para o estabelecimento de vínculos reais entre os povos peninsulares: no plano económico, científico, cultural e mesmo político, seja por meio de estruturas trans-fronteiriças como por posicionamentos e estratégias comuns e de mútuo interesse nas instituições internacionais das que ambos estados ibéricos formam parte.

Os problemas comuns de ambos os países levam à convergência possibilitando o reforço da sua posição nas instituições multilaterais. A pertença ao grupo inicial dos países de coesão, a entrada simultânea no Sistema Monetário e a adoção da moeda única, a participação do espaço Schengen, a sintonia em relação às regiões ultra-periféricas (Açores, Madeira e Canárias) ou as comuns reticências em relacção ao alargamento são evidencias desta convergência. Em referência a este último ponto, embora a ampliação recebesse o apoio de ambos os países – como não podia de outro jeito, são também os que menos se beneficiam e mais tem a perder: menos acesso aos novos mercados; padecer a competência no mercado interior europeu e atracção de investimento estrangeiro; a já referida questão dos fundos estruturais; e deslocamento do centro de gravidade da UE para o leste (Cravinho, 2001: 80).

Em relação à adesão, é certo que Portugal já tinha uma experiência significativa em matéria de cooperação económica europeia dado o seu status de membro fundador da EFTA (Jiménez, 2007: 213). Quiçá por isso, e pelo facto de que a integração de Portugal resultava menos dificultosa do que a espanhola, houve do lado português reticências significativas na hora de aceitar uma negociação conjunta com o Estado espanhol. Não se esqueça que foi a própria CEE quem atrasou a aceitação do ingresso formal de Portugal para que este acontecesse junto com o da Espanha.

No entanto, também é certo que a dinâmica de trabalho estabelecida com esse processo contribuiu para a aparição de um clima de confiança ibérico. O legado desse momento são as cimeiras bilaterais luso-espanholas, cuja eficácia é mais discutível no âmbito dos grandes acordos políticos, mas relativamente exitosa na vertente da cooperação técnica. Assim, com a abertura de fronteiras, liberalização e integração económica e monetária a União supôs um verdadeiro marco de re-encontro entre Portugal e o Estado espanhol.

Já em referência à política externa, não é novidade afirmar que, historicamente, Portugal foi sempre mais aberto para o exterior do que o Estado espanhol. Como dizia Eça de Queiroz: “Espanha é o que há que atravessar para chegar a Europa” (apud Cruz, 2001: 21). Portugal, pela sua posição ante o Estado espanhol, foi sempre mais virado para o Atlântico, mantendo ainda hoje uma postura periférica e soberanista na linha britânica ou holandesa. No entanto, o Estado espanhol, ansioso de protagonismo, manteve tradicionalmente uma atitude mais europeísta, continentalista e federalista, mais ligada ao eixo franco-alemão. A excepção que confirma a regra produziu-se após o 11-S com a viragem euro-atlantista espanhola do governo de Aznar, colocando durante um tempo à estratégia portuguesa de diferenciação em xeque. De continuar com a opção diferenciadora, voltando-se para o eixo europeísta / federalista / continentalista, Portugal teria anulado a sua credibilidade internacional (Gaspar, 2007: 182). Não foi necessário.

A vitória do PSOE em 2004 supôs a volta para a normalidade. Enquanto a política externa da Espanha vira em função da direcção do vento, Portugal tende a valorizar as suas alianças históricas conservando uma estratégia política internacional a longo prazo. O enraizamento da opção portuguesa evidencia-se com a vitória do PS em Portugal, sendo que a estratégia euro-atlantista prima ante a similitude dos partidos no governo em ambos os países. Assim, pode-se afirmar que as relações entre ambos os países não sofrem grandes variações em função dos partidos no poder. No entanto, e como expressa Gaspar, quando a Espanha se tenta projectar como grande potência, apropriando-se da estratégia euro-atlantica portuguesa e atribuindo-se uma ‘relação especial’ com os E.U.A. (muito ao estilo britânico), e como aconteceu após o 11-S, Portugal vê-se diminuído convertendo-se, em palavras de Gaspar, em mestre de cerimónias do vizinho tal e como aconteceu na cimeira dos Açores em 2003 (2007: 181).

O Estado espanhol, no seu delírio de grandeza (pense-se apenas na polémica de faz alguns anos quando mídia e políticos reprochavam ao governo o facto desse país não ter participado na cimeira do G-8 – por se não o sabem, desde faz algum tempo insiste-se na mídia que a Espanha é a oitava potência mundial, embora não saibamos muito bem do quê), atribuira-se o estatuto de grande estado, pretendendo formar parte desse “diretório europeu”. Assim se evidenciou em Niza, onde Espanha quis jogar o papel de grande no reparto de votos, afastando-se da posição portuguesa (Ortega apud Alcaide, 2001: 98). Nesse sentido, a estratégia portuguesa, mais ligada à denominada política dos pequenos e médios estados (categorias, no entanto, com as que não concordo em absoluto) partira para a defesa da sua individualidade dentro da UE.

Por citar alguns exemplos, pense-se nas negociações do tratado Maastricht. O Estado espanhol foi firme partidário da Política Europeu de Segurança e Defesa (como evidencia a participação deste país no Eurocorpo) enquanto Portugal com a Grã Bretanha se inclinava pela defesa da UEO como pilar europeu da NATO. Outro dado significativo no âmbito da defesa é que Portugal fez sempre questão que as suas tropas em missões da NATO, UE ou ONU nunca estivessem sob comando espanhol.

A América Latina é um problema à parte. Tanto Portugal como Espanha trabalharam intensamente no marco da UE para o incremento qualitativo e quantitativo das relações com a América Latina em geral e com o MERCOSUL em particular. No entanto, a estratégia com a América Latina é também motivo de tensão, uma vez que a Espanha pretende ostentar a liderança na sua condição de “mãe-pátria hispânica”, por vezes desbancando o vínculo especial com o Brasil e colocando em segundo plano o projeto lusófono. A cada vez maior valorização do Brasil na Espanha, manifestado pelas crescentes inversões naquele país (na que a banca e telecomunicações são pontas de lança –nomeadamente o Grupo Santander e Telefónica- seguido agora do sector da construção, que vê os seus mercados reduzidos na península), releva a Portugal, que deve impulsionar estratégicas mais ativas nas que a vertebração lusófona é clave.

O mesmo se pode dizer do norte da África. Considerando os conflitos da Espanha com o Marrocos (lembre-se o episodio da Ilha Perejil-Leila e as ainda pendentes questões do Saara e, em menor medida, Ceuta e Melilha) a passividade das políticas portuguesas para esta região, submetidas em boa medida às espanholas, carece de sentido (Gaspar, 2007: 179). Em relação à África subsaariana acontece o aposto, iniciando-se a atenção política espanhola para o continente desconhecido apenas nos últimos anos. Obviamente, e tal como se manifestou nas Cimeiras ibero-americanas, as prioridades de cooperação internacional para Portugal e o Estado espanhol não são idênticas. O cenário africano é um bom exemplo.

Como síntese, é obvio que as posições de Portugal e Espanha nem podem nem devem ser totalmente convergentes no âmbito comunitário (Martins da Cruz, 2001: 36). Mas há que avançar na definição de áreas de coordenação e cooperação que facilitem as sintonias e evitem tensões desnecessárias.


Joám Evans Pim, Director do Instituto Galego de Relações Internacionais e da Paz

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